Medo de Magic Eye

Finalmente sentado no banco de trás do táxi amarelo desbotado, já no iniciar da noite, sigo para casa enquanto busco um pouco de ar fresco pela janela, cujo vidro entreaberto permitia a passagem de um hálito morno e carregado, com o odor do burburinho e da afobação característico das grandes cidades. Num ritual um tanto improvisado, inspirava e expirava na tentativa quase vaga de me recuperar do inconveniente ocorrido há alguns minutos, episódio este que se deu pelo atraso demasiado do táxi, levando em torno de uma hora para chegar ao meu encontro. Nada me irritava mais do que atrasos! Parece que sempre há uma desculpa barbada e decorada para se dar como explicação sempre que alguém, na iminência de se auto advogar, começa a cuspir em cima de você uma enxurrada verborrágica de esclarecimentos. Outra coisa que me deixava com os nervos sobressaltados eram os engarrafamentos infernais típicos destes horários catastróficos de fim de expediente. Os ditos “horários de pico”, eram extenuantes e quentes, onde todos, principalmente os táxis, sempre se atrasavam. Assim ocorria toda sexta-feira, então, de certo modo, isso já havia se tornado um hábito, detestável e broxante, mas um hábito! Imposto e inevitável, como tantos outros aos quais nos adaptamos.

Sou obrigado a me submeter a tais incidentes, isso porque não ouso nem pensar na remota possibilidade de dirigir, só de imaginar sinto ligeiros calafrios me percorrendo a espinha. Em questão de segundos, recordo o trágico acidente de carro que ceifou a vida do meu irmão mais velho e que custou as pernas da minha mãe. Quem não teve a mesma sorte foi a jovem pedestre que, por triste coincidência, passava no local naquele mesmo instante (mais uma que estava no lugar errado, no momento errado), e foi atingida em cheio pelo automóvel desgovernado. Uma falha mecânica acabou por transformar aquele belo passeio em família, num calamitoso episódio estampando as edições dos jornais locais sucessores àqueles dias. Todas estas tragédias somadas bastaram para gerar em mim um trauma profundo de dirigir carros, que a mais vaga ideia, por tão inofensiva que fosse, de me assentar frente à direção e empunhar um volante, se transformava em gatilhos mentais que assassinavam a minha paz.

Perdido em meio a tais recordações, mal reparei já haver chegado ao destino. Neste momento, desço tão atônito do carro que quase sigo em direção à recepção do apartamento sem antes pagar pela corrida. Ultimamente, andava tão distraído e atarefado, que minha memória falhava de modo recorrente, tamanho era o grau de desatenção, que repetidas vezes quase fui atropelado rua afora, ao atravessá-la sem me certificar de que era seguro fazê-lo, ou, de que o sinal estava aberto para que a travessia pudesse ser feita. Estes são alguns dos efeitos do modelo de vida adotado por um executivo contemporâneo. Depois de finalmente acertar as contas com o motorista, sigo meio desengonçado e ofegante em direção ao saguão de entrada, onde passo quase imperceptível pela recepcionista, já de braço esticado com o dedo indicador a postos para apertar os respectivos botões correspondentes ao andar do meu apartamento. Para minha alegria, o elevador não tardou a chegar, o que era algo raríssimo de ocorrer, principalmente nos últimos dias em que o mesmo estava interditado para manutenção, sobretudo nas sextas-feiras. “Bom, pelo menos este não se atrasou”, logo pensei aliviado.

A porta se abriu imediatamente, enchendo de luz os meus olhos e de alegria meu coração, cobertos e soterrados por aquela estafa característica de finais de semana. Aos olhos alheios, aquela cena poderia ser apenas a de uma porta qualquer se abrindo para alguém que a solicitou, mas, para mim, não! Frente aos estressantes episódios ocorridos naquele dia e semana, era como se os próprios portões do paraíso se prostrassem escancarados diante de mim. Eu, um simples executivo com olheiras acentuadas e semblante compadecido, dou longos passos em direção ao interior do elevador, enquanto inspiro longamente, de tal forma que o ar estufa completamente meus pulmões, trazendo uma rajada de ar puro que adentra as minhas narinas, varrendo qualquer vestígio restante de cortisol em minha corrente sanguínea; de imediato trazem-me um relaxamento que há muito não sentia.

Andar de número 22, enfim, me encontro de pé na ala que dá acesso ao pequeno apartamento em que vivo, que fica mais ou menos no centro daquele estreito corredor. Naquele momento, já um pouco mais relaxado e tranquilo, caminho a passos lentos e completamente despreocupados em direção à porta cor de marfim, cujas dobradiças douradas, de maçaneta fosca em tom marrom café, davam à porta uma textura sólida e sem graça. Nela havia uma gravação em aço com o número 45 cravado mais ou menos à altura dos olhos. O magic eye estava tapado, já que não era muito fã daquele maldito orifício, que se revela, de uma certa forma, um ponto vulnerável para quem se encontra do lado oposto ao que batia ou tocava a campainha. Enquanto me perdia em meio ao pesado molho das chaves da casa, me ponho a recordar de mais um trágico evento ocorrido na minha infância. Certa vez, meu irmão do meio brincava distraído na rua em frente à nossa casa. Enquanto corria atrás da bola para lá e para cá, distraiu-se com sabe-se lá o quê, ao passo que a bola, ainda no ar, em consequência do último chute recebido, desvia a sua rota e vai parar no jardim da vizinhança. Como não havia cercas que impossibilitassem a entrada ou cachorros aos quais temer, e a porta que dava acesso aos fundos era uma velha cancela de madeira, cuja tramela podia ser alcançada por qualquer pessoa (inclusive uma criança de pequena), vivia mais aberta do que fechada. Nisso, sem titubear ou se intimidar por estar invadindo propriedade alheia, meu irmão simplesmente se dirige até lá a fim de recuperar o brinquedo que, por assim dizer, era o seu preferido.

O que não sabem até então a respeito dele é que, quando criança, até meados de sua adolescência, meu irmão foi um jovem muito levado e arteiro, capaz das atrocidades mais escabrosas que se pode (ou não) imaginar, e sabe-se lá por qual razão, resolve do nada se dirigir até a campainha e apertá-la tranquilamente com ar de quem estava bem-intencionado, mas, fato é que ele não estava nem um pouco. Bom, o que sei é que ele sempre fora uma criança um tanto quanto fascinada (e até mesmo fissurada) por campainhas, uma vez que grande parte dos episódios em que vizinhos mais próximos, vindos de todas as direções, queixavam-se dele para nossa mãe, tinham como objeção principal aquele velho truque (que ele realizava com maestria), de tocar a campainha repetidas vezes e se esconder atrás do primeiro arbusto volumoso que encontrasse pela frente, até por fim ser descoberto pelo dono da casa, que na terceira ou quarta vez no máximo, espiava com a porta entreaberta sem que o pimentinha percebesse, e quando o fedelho menos esperava, era agarrado pelo braço. Porém, naquela ocasião, ele resolveu ir muito mais além e a brincadeira inofensiva cedeu lugar à maldade inescrupulosa, pouco comum de se encontrar em corações infantes. Sabe-se lá por que (julgo eu que por vingança), ele apanha um pedaço de vergalhão que jazia caído ali por perto, e o dobra insistentemente até que ele se partisse ao meio, e após ter alcançado seu objetivo, dirigiu-se à porta.

Antes de tocar a melodramática campainha, ele trata de arranjar algo em que pudesse subir para alcançar o orifício da porta. Não foi tarefa difícil encontrar algo que pudesse servir de degrau, já que havia espalhado no quintal uma porção de pedaços de madeira, pedras e afins. Uma lata de tinta vazia foi a única coisa leve que conseguiu encontrar dentro dos perímetros do jardim, que, a propósito, era imenso. Uma vez munido dos suportes necessários para ficar na mesma altura do tal magic eye, ele, sem recuar em sua ação minuciosamente calculada, prepara-se para o clímax desta história macabra, e toca a maldita campainha, cujo som, nesta ocasião, se tornara a trilha sonora a antecipar o ataque perverso de um jovem endemoniado. Quando o vizinho se aproxima, anunciando a sua chegada por densos passos, cujo ribombar das grossas botas que trajava adentrava os ouvidos aguçados de meu irmão, que conseguia calcular com precisão cirúrgica a distância que o alvo se encontrava da porta. Antes mesmo que a maçaneta começasse a girar, ele ergue sua mão para trás enquanto com a outra se apoia na porta a fim de não se desequilibrar, e com todas as suas forças, numa pontaria digna de premiação, enfia o pedaço enferrujado de metal pelo orifício onde, do outro lado, o olho castanho de pobre mártir, registra sua última visão antes de testemunhar a dor mais terrível de sua vida abrir lugar para a chegada da opaca escuridão.

Bom, o resto da história nem convém ser contado, já que o pior dela foi relatado. O que cabe contar é que meu irmão foi tão surrado pela minha mãe, que os urros dados por ele, bem como as lágrimas que foram vertidas, são lembranças das quais me recordo com nitidez e certo calafrio corrente na espinha, que nem mesmo o tempo poderá varrer para baixo do tapete do esquecimento. O vizinho, coitado, foi parar no hospital, e por sorte ou por milagre, não sei bem ao certo, não perdeu mais do que a visão de um dos olhos em função do comprometimento total do nervo óptico; o que sei é que aquele nosso vizinho me deu uma das maiores lições de empatia que presenciei em minha vida, foi de uma atitude ímpar a sua em aceitar os milhões de pedidos de desculpas da minha mãe, e ainda, ir pessoalmente conceder o perdão ao meu irmão na nossa pequena casa, logo após receber alta do hospital. Confesso até meio emocionado que aquela atitude de sua parte me tocou profundamente, e posso dizer que foi ele o grande responsável pela minha conversão ao cristianismo; e também, cabe ressaltar que é daí que vem o meu pavor do tal magic eye, ou se preferirem, aquele pequeno orifício óptico que a maioria das portas tem.

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